
O Psicodrama, desde sua criação por Jacob Levy Moreno, tem se estabelecido como uma prática terapêutica transformadora, mas sua legitimação como ciência é um campo de intensas disputas. A autora Oriana Holsbach Hadler, em seu artigo Uma Alegoria Kafkiana para Pensar o Encontro entre Psicodrama e Ciência, publicado na Revista Brasileira de Psicodrama (v32, 2024), propõe um olhar profundo e provocador sobre esse processo, utilizando a obra de Franz Kafka para explorar as complexas relações entre o Psicodrama e as ciências tradicionais.
A questão central levantada pela autora é: que tipo de ciência o Psicodrama representa? A resposta a essa questão envolve uma análise das formas históricas de construção do saber científico e como estas influenciam o reconhecimento do Psicodrama como uma prática legítima dentro da academia e da ciência em geral. Para isso, Hadler recorre à figura de um dos contos mais emblemáticos de Kafka, Na colônia penal, que se torna uma poderosa metáfora para ilustrar as dinâmicas de poder e conhecimento no campo científico.
O Explorador: Reflexão sobre o Cientista e o Objeto de Estudo
No conto kafkiano, o protagonista é um explorador intelectual que se encontra numa colônia penal para testemunhar uma execução brutal. Sua posição inicial de observador e sua insistência em se manter neutro, sem intervir nas questões locais, representam a primeira virada epistemológica abordada por Hadler: a primazia do indivíduo sobre o social. O explorador, tal como o cientista tradicional, tenta distanciar-se do objeto de estudo, adotando uma postura impessoal e neutra, o que reflete o modo como as ciências da natureza, por exemplo, procuram "representar" a realidade sem se envolver diretamente com ela.
Essa postura, segundo Hadler, é semelhante à busca de Jacob Levy Moreno em fazer do Psicodrama uma prática cientificamente comprovada. A sociometria, desenvolvida por Moreno, foi uma tentativa de vincular a prática psicodramática a métodos científicos, utilizando dados e análises quantitativas para validar suas abordagens e métodos. No entanto, como a autora aponta, essa forma de ciência busca mais a adaptação do sujeito a normas pré-estabelecidas do que uma compreensão plena da complexidade humana e social.
A Virada Epistemológica: A Crítica ao Positivismo
A segunda virada epistemológica que Hadler discute diz respeito à superação do positivismo rígido, mas com a permanência de uma visão de ciência que ainda lida com o sujeito como um objeto de adaptação. Nesse estágio, o cientista começa a questionar a separação entre teoria e prática, mas ainda assim vê o objeto de estudo como algo distante, a ser observado de fora. Esse movimento também é visível nas tentativas de validação científica do Psicodrama na Europa, que ainda buscavam enquadrar a prática psicodramática nos moldes da ciência tradicional, priorizando a medição de resultados e a reprodutibilidade de técnicas.
A Terceira Virada: A Ação Crítica e o Desafio à Neutralidade Científica
Porém, a verdadeira transformação ocorre na terceira virada, quando o explorador de Kafka começa a questionar sua posição neutra e se vê implicado no processo que observa. Quando ele decide interagir com a máquina de tortura da colônia penal, sua postura de observador se desfaz. Ele não pode mais manter-se à margem e é forçado a se envolver ativamente no processo de sofrimento e condenação. Esta mudança simboliza a necessidade de uma ciência que não apenas observe passivamente, mas que se envolva, se posicione e se comprometa com a realidade social.
Hadler traz para essa reflexão os conceitos contemporâneos de desobediência epistêmica e práticas contracoloniais, que questionam a objetividade e neutralidade da ciência tradicional. Ao contrário da ciência que tenta se isolar, a autora propõe uma prática científica que se envolva com os saberes locais, com as realidades sociais e culturais, e que não tenha medo de se deixar atravessar pelos movimentos sociais e pelas lutas por justiça. O Psicodrama, ao ser inserido nesse contexto, se revela uma prática que não apenas analisa, mas que atua, transforma e questiona as estruturas de poder estabelecidas.
Conclusão: A Ciência que o Psicodrama (Re)produz
A alegoria kafkiana proposta por Hadler nos convoca a refletir sobre o tipo de ciência que o Psicodrama realmente representa. Não se trata apenas de validar sua posição dentro dos parâmetros científicos tradicionais, mas de questionar quais práticas científicas estamos (re)produzindo através das metodologias psicodramáticas. Em um momento de transformação epistemológica, o Psicodrama não é apenas uma prática terapêutica ou uma técnica, mas uma postura crítica que desafia as fronteiras da ciência, do poder e da intervenção social.
A proposta da autora é clara: é preciso que o Psicodrama se abra para a multiplicidade de saberes e perspectivas, rompendo com a lógica positivista e cartesiana, para que a ciência se torne um espaço mais inclusivo, ético e comprometido com a transformação social. Em última análise, como o explorador de Kafka, o Psicodrama deve deixar de ser uma simples observação e passar a ser uma prática ativa de mudança e de engajamento com as questões que envolvem o ser humano e a sociedade.
Referências:
Hadler, O. H. (2024). Uma alegoria kafkiana para pensar o encontro entre Psicodrama e Ciência. Revista Brasileira de Psicodrama, 32, e0424, 1-5. https://doi.org/10.1590/psicodrama.v32.661
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